Itália 1961, numa época em
que a banda desenhada, conhecida neste país da Europa mediterrânica como
fumetti`s, era a principal fonte de entretinimento, e os heróis mais populares
eram Tex, da Edizioni Araldo, a atual Sergio Bonelli Editore, Il Piccolo
Sceriffo da editora Torelli,
Capitan Miki e Il Grande Blek, da Editoriale
Dardo, surge Zagor!
Criado por Sergio Bonelli, o filho daquele que ficaria
conhecido como o patriarca da banda desenhada italiana, Gianluigi Bonelli,
criador do personagem de maior sucesso nesse país, Tex Willer, e por Gallieno
Ferri, este o criador gráfico. Ferri, que nos anos antecedentes tinha
trabalhado quase exclusivamente para o mercado francês sobre o pseudónimo de
Fergal, era praticamente um desconhecido no seu próprio país! Meses antes do
lançamento de Zagor encontrou-se com Sergio no escritório deste, para lhe
apresentar os seus trabalhos, com o objetivo de desenhar para a editora, e para
o mercado italiano. Sergio, que assinava as suas histórias como Guido Nolitta,
para que os leitores não o confundissem com o seu pai, ficou muitíssimo
impressionado pela qualidade do jovem desenhador, decidindo utiliza-lo
imediatamente, tendo-lhe entregue alguns argumentos de Giubba Rosa escritos pelo
seu pai. Concluídas essas histórias, e estando todos os argumentistas da
editora ocupados, não restou outra opção ao também jovem editor, senão criar
ele próprio um herói para esse propósito! Este foi o ponto de partida para a
existência de Zagor, cujo verdadeiro nome é Patrick Wilding, mas também é
conhecido como “O Rei de Darkood”, “Zagor-te-nay”, ou “O Espirito da
Machadinha”.
Nolitta traçou objetivos
muito claros para o novo personagem! As aventuras deste herói seriam dedicadas
a uma faixa de leitores mais jovens que os leitores de Tex, sem no entanto
caírem na infantilidade. Teriam como principal cenário a floresta imaginária de
Darkwood e decorreriam na América na primeira metade do século XIX. Mas Nolitta
pretendia algo mais do que um novo herói do Oeste Americano e ficar amarrado às
típicas histórias do faroeste! Para contornar esta limitação, incluía temas
intemporais nas suas tramas, e alternava ou sobrepunha o género narrativo ao
longo das histórias, deambulando pela ficção científica, comédia, horror, ou
drama, com extrema facilidade. Esta capacidade de “navegar” entre géneros
ficaria como a sua imagem de marca no personagem! Delineados os princípios
fundamentais do novo herói, Sergio efetuou alguns esboços a que Ferri
acrescentou algumas sugestões para a composição final, como as riscas
horizontais nas calças, ou o símbolo de uma águia negra na camiseta. Para a
fisionomia basearam-se, inicialmente, em Robert Taylor, um dos atores Norte
Americanos mais populares na época. Mas essa imagem não vai durar muito! Ferri,
que era jovem, atlético, e bem-parecido, passadas poucas histórias começa a
desenhar Zagor utilizando ele próprio como modelo, como já havia feito com
Thunder Jack. Faltava o nome! Em 1961, com algumas histórias já prontas, o novo
herói ainda não tinha sido batizado! Ajax era uma ideia que Sergio tinha em
mente! A inclusão do “X” tornava-o apelativo! Na época era usual incluir nos
nomes dos heróis “X” ou “K”, porém, a descoberta que Ajax era também o nome de
um detergente vai tornar esta opção inviável. Sergio resolveu a questão
homenageando dois outros heróis, conjugando duas silabas dos seus nomes: ZA,
proveniente de “Za-la-mort”, famoso herói do cinema mudo italiano e GOR, de
Flash Gordon, um dos heróis da sua infância. Assim surgiu Zagor em 15 de Junho
1961, um herói que, segundo o criador, é uma mistura de Tarzan, de Fantasma, e
de “Il Grande Blek”.
As necessidades da pequena editora que possuía uma estrutura familiar e pouco profissional, que exigiam a Sergio o desempenho de múltiplas tarefas, vão força-lo a abandonar Zagor logo após os primeiros números”1. O primeiro a substituí-lo foi o próprio Ferri que possuía alguma experiencia como argumentista resultante, essencialmente, dos trabalhos efetuados para o mercado francês. O talentoso desenhador vai manter a dupla função de ser responsável pelo argumento e arte, por vários meses, até ser, também ele, substituído pelo pai de Sergio, Gianluigi. “La lancia spezzata”2, publicado em Junho de 1962, marca essa transição! Nos longos meses que Ferri foi o único responsável pela produção das histórias, Bonelli filho dirigia a editora durante o horário normal de funcionamento e, nos tempos livres, elaborava um esboço do enredo. Ferri desenvolvia o argumento baseando-se no esboço e desenhava toda a aventura, sendo posteriormente supervisionado pelo editor, que retocava diálogos e outros pormenores, garantido desta forma a homogeneidade do personagem.
As cerca de 80 tiras que
compunham cada edição, correspondem a cerca de 27 pranchas

GIAN LUIGI BONELLI
no atual formato
Bonelli! Texto e desenho que teriam que estar prontos a cada quinzena devido à
periodicidade das publicações! Um trabalho descomunal, que exigia um esforço
titânico e impossível de manter a longo prazo, sem perda de qualidade! Basta
pensar que a maioria dos atuais desenhadores produzem apenas entre dez e quinze
pranchas mensais, sem se preocuparem com o texto. Para aliviar Ferri, mas também
Sergio, Gianluigi Bonelli vai escrever todas as aventuras do personagem por
quase um ano, acumulando com as cerca de 1100 pranchas que escreveu para Tex,
durante os anos 1962 e 1963.

Nolitta só vai regressar à série com “Tragedia nella palude”, o número 13 da segunda série publicado em 26 de Maio de 1963. Após o regresso e durante dezassete anos, até ao número 182 da atual série3, “Magia senza tempo”, publicada em Setembro de 1980, Nolitta vai escrever a grande maioria das histórias, criando algumas das mais belas aventuras do herói, que ainda hoje permanecem na memória dos fãs. O afastamento de Sergio ficou-se a dever, mais uma vez, às necessidades da editora! Primeiro para alternar com o seu pai, que não era mais um jovem, escrevendo histórias de Tex, depois para se dedicar a Mister No, personagem que criou em 1975, também com Ferri, e por ultimo, para se dedicar integralmente à administração da empresa.
Em pouco mais de quarenta
páginas Nolitta “prendeu-me” a Zagor! Numa época em que

ZAGOR Nº 6
não existiam computadores,
consolas de jogos, e muito menos internet, e a televisão ainda não tinha saído
da “pré-história”, não permitindo gravações ou o recomeçar de um programa, e
dispondo apenas dois canais: Um deles, o segundo canal da RTP, encontrando-se a
maior parte do tempo fechado, ou a transmitir desporto! A BD era assim o
passatempo da grande maioria das crianças e adolescentes, com uma enorme
quantidade de títulos nas papelarias todas as semanas. Foi nessa época que
descobri o personagem, nos finais da década de setenta, início dos anos oitenta
do seculo passado, no sexto número da coleção não autorizada da Portugal Press,
intitulado de “Hora zero”4. A
complexidade do argumento, o mistério provocado pelos estranhos eventos
ocorridos na floresta, a referência ao “velho” que apenas aparece na capa, a
comicidade das situações em que Chico se vê envolvido, a ficção e os
anacronismos presentes, como a existência de eletricidade e misseis no século
XIX, e pela acção: A edição inicia-se com Zagor a lutar com uns misteriosos
soldados na floresta e concluiu-se com o herói a ser descoberto no interior da
montanha onde se infiltrou para descobrir os mistérios do “Olho do Diabo”. Tudo
isto em apenas quarenta e oito páginas! Uma pequena parte do segundo encontro
com Hellingen.

Após a saída de Nolitta,
Zagor vai atravessar a pior fase da sua já longa existência. Fase que em Itália
é referenciada como “a década perdida”5! Este período correu tão mal ao ponto de se ter
equacionado o cancelamento da publicação, o que não deixa de ser
incompreensível! Como é que uma revista que vendia mais de duas centenas de
milhares de exemplares por mês, só sendo ultrapassada por Tex, cai
drasticamente nas suas vendas tendo, unicamente, como alteração de fundo, a
saída de um escritor? È verdade que neste ciclo não foi só Zagor que perdeu
leitores! Foi uma época extremamente negativa para a BD mundial devido,
essencialmente, ao surgimento de outras formas de entretenimento, como as
primeiras consolas de jogos. A equipa de desenhadores, tal como na fase
anterior, manteve Ferri e Franco Donatelli como responsáveis pelo desenho na
maioria das aventuras. Na criação dos roteiros transitaram Decio Canzio e
Alfredo Castelli, que não eram propriamente novatos, (pertenciam ao staff da
publicação desde 1977), a que se juntaram Ade Capone, Daniele Nicolai, Giorgio
Pellizzari, Moreno Burattini e, principalmente, Marcello Toninelli que se
tornaria o principal argumentista da série tendo escrito a maioria das edições
publicadas entre 1983 e 1991. A verdade é que as histórias perderam o encanto!
A diversidade de géneros presente em cada a aventura exigia o doseamento
adequado para não cair na infantilidade ou em excessos de fantasia, algo que
Nolitta tinha conseguido com mestria na maioria das suas histórias, e que neste
período, os escritores parecem não ter conseguido conciliar.
Intitulada de “A segunda
odisseia Americana”, uma mega saga de trinta e uma edições, que incluiu
diversas aventuras, e que envolveu praticamente toda a equipa de desenhadores e
escritores da época, vai devolver o carisma perdido a Zagor! Nesse arco de
histórias, “O espirito da Machadinha” e Chico são retirados do seu “habitat” e
iniciam uma longa peregrinação a diversos países da América do Norte,
replicando um pouco, mas numa escala muito maior, a história clássica de
Nolitta e Ferri publicada em 1972. “L`esloratore

ZAGOR Nº 345 ITALIANO
scomparso”6, publicada em Abril de 1994, uma das primeiras aventuras
do “Rei de Darkwood” escritas por Boselli, para além de ser o início da saga, é
também considerada um marco na vida editorial do personagem. O ponto de viragem
numa publicação que esteve para ser cancelada e que devolveu o fascínio ao
herói, e às suas aventuras! Em pouco tempo as histórias retomaram o interesse
perdido, graças principalmente à dupla de escritores, Burattini e Boselli, que
efetuaram um trabalho descomunal de pesquisa, juntamente com os desenhadores
envolvidos, consultando todo o tipo de informações para tornarem mais
credíveis, paisagens, ambientes, povos, vestuário, povoações etc. Este duo
parece ter redescoberto a formula “Nolittiana”! Voltaram as histórias longas, a
mistura de realidade e ficção, e a utilização dos diversos géneros nas
proporções adequadas, que tornaram este personagem único e, que os seus fãs
tanto apreciam. Mas não só! Foram introduzidas na série várias personagens de
relevo, como Nat Murdo, Honest Joe ou Marie Laveau. A equipa de desenhadores
foi reforçada com desenhadores muito talentosos, como Carlo Raffaele Marcello,
Raffaele Della Monica ou Alessandro Chiarolla que se juntaram a Mauro Laurenti,
Stefano Andreucci, ou Gaetano Cassaro, que tinham entrado nos últimos anos.
Quando Zagor regressa a Darkwood, no número 376 da coleção, o espectro do
cancelamento tinha desaparecido definitivamente!

Os números de Zagor são
realmente impressionantes! Publicado ininterruptamente por

EDIÇÃO AMERICANA DE
" A AREIA É VERMELHA"
várias editoras há
mais de meio século em Itália, alvo de várias coleções, extras e especiais, são
muitas centenas de aventuras e edições, nas diversas coleções, ultrapassando as
setenta mil páginas! No país de origem, onde as vendas atingem cerca de 35000
cópias mensais, ainda que bem distantes dos tempos áureos em que ultrapassavam
as duzentas mil cópias, mas bastante aceitáveis tendo em conta a realidade
atual da BD, Zagor continua a ter um publico bastante fiel, que se estende a
diversos outros países onde é publicado, como a Sérvia, Croácia, Turquia,
Grécia, ou Brasil. Foi também publicado e apreciado em diversos outros paises,
possuidores de culturas muito diferenciadas, como a India, Dinamarca, Israel,
Inglaterra ou França. Zagor teve também direito a uma breve passagem pela
sétima arte sem no entanto atingir o sucesso protagonizado na BD. Nos anos
setenta foram produzidos na Turquia três filmes com baixos orçamentos, e sem as
devidas autorizações por parte da editora. Em Itália, “Noi, Zagor”, o
documentário realizado por Riccardo Jacopino dedicado ao mundo de Zagor e aos
seus criadores, esteve em exibição, no Outono de 2013, em cerca de duas
centenas de salas de cinema. Com inicio em Fevereiro de 2012, e reproduzindo o
sucesso de Tex na republicação das suas aventuras a cores em coleções
publicadas com parcerias com dois dos maiores jornais italianos, La Repubblica
e L`Espresso, as aventuras de Zagor foram também republicadas em coleções
similares: As primeiras quinhentas edições da coleção mensal e todas edições do
ZAGOR SPECIALE. Criando-se desta forma um novo produto capaz de conquistar,
outros mercados como os E.U.A., país que começou a publicar recentemente o
personagem, ou, outra gama de leitores, os que preferem as edições coloridas!

" A AREIA É VERMELHA"
Mas afinal qual é a chave
do sucesso de Zagor? A resposta a esta pergunta não é assim tão linear!
Obviamente que as razões do sucesso serão as mais diversas, e algumas delas
poderão, mesmo, parecer incompreensíveis. Afinal, quem poderia imaginar que um
tipo com uma arma incomum, (uma machadinha feita com uma pedra), e uma aparência
extravagante, (veste uma camiseta vermelha com uma águia ao peito), que se move
na floresta como Tarzan, e vive isolado como o Fantasma, num meio onde tudo
pode acontecer, como se fosse um portal para diferentes épocas, e que, quando
se ausenta, vagueia não só por toda a América, mas também por outros
continentes, em que as suas aventuras serpenteiam por uma miscelânea, e por
vezes, aparentemente, inconciliáveis géneros narrativos, se tornaria um dos
personagens mais adorados e duradouros da BD
italiana, e que meio seculo depois da primeira aventura continuaria a ser
publicado? Até o próprio Sergio Bonelli, criador literário do personagem,
visionário, e o principal arquiteto da transição da simples BD de
entretenimento popular, para um produto de dignidade cultural, responsável pelo
sucesso de uma das mais importantes editoras a nível internacional, a SBE,
teria muitas dificuldades em acreditar.
Para Buratinni uma das
principais razões é o personagem manter-se fiel às suas raízes e

MORENO BURATINNI
as mudanças
ocorridas terem sido graduais, quase impercetíveis, e essencialmente na
narrativa e não no caracter. Com o curador e o principal escritor da
atualidade, a narrativa tornou-se mais rápida, e o herói têm perceção diferente
do leitor, desconhecendo factos, o que não acontecia com Nolitta, em que ambos
tinham a mesma perceção da trama. Incluídas nessas alterações, a utilização
frequente de flashbacks, de cruzamentos com personalidades históricas, como o
presidente Jackson, o pirata Lafitte, Charles Darwin ou o filósofo Tocqueville,
bem como, uma maior atenção à realidade. Outro segredo das aventuras de Zagor
continuarem a ser muito interessantes, reside, também, segundo o escritor, na
forma como se misturam todo o tipo de histórias, mantendo neste aspeto, a
fórmula definida por Nolitta.

Sempre apreciei muito essa
mistura de géneros! Essa característica é talvez a mais

ZAGOR Nº 1 RGE
importante nas
histórias de Zagor! A que faz a diferença para todos os outros e que torna o
personagem único! Após a leitura de “Hora zero” fiquei fã de “O espirito da
machadinha”, tal como fiquei de Mister No quando li o primeiro número da
Portugal Press! Passaram-se vários anos para conseguir ler uma história
completa destes personagens, que tanto me fascinaram. Somente em 1985, quando o
personagem começou a ser publicado pela RGE tive essa possibilidade! “O tesouro
maldito”, apesar de ser uma história curta para os padrões “Zagorianos”, cerca
de cem páginas, não deixa de ser um bom exemplo de uma aventura de Zagor. Uma
caça ao tesouro que encaixa bem no género de aventura, mas é sem dúvida,
também, de horror, de suspense, e parecendo quase impossível, de muito humor e
drama. Como classificar uma história deste tipo? Um dos elementos do universo
“Zagoriano” que permite combinar todas estas incongruências é a floresta de
Darkwood que Nolitta criou com esse objetivo: Possibilitar todo o tipo de
cenários e aventuras, sem grande preocupação com a realidade histórica,
geográfica ou temporal, e cruzar ficção com qualquer uma dessas realidades, ou
personalidades. Darkwood é assim a porta da fantasia, que proporciona a
desenhadores e escritores um cenário criativo, facilmente adaptável a qualquer
realidade ou situação.

Outro factor que muito
contribui para o sucesso de Zagor são as personagens secundárias!

AMIGOS DE ZAGOR
Entre amigos
e inimigos existem dezenas de personagens carismáticas à disposição dos
escritores, que consoante o tipo de aventura são inseridas, sendo que apenas
Chico acompanha, permanentemente, o protagonista em todas as histórias. Só para
introduzir comicidade nas narrativas, em longas tiradas que ocupam dezenas de
páginas, ou em pequenos episódios, em qualquer parte das histórias, todos eles
com personalidades muito marcantes e diferenciadas, destacam-se, Trampy,
Digging Bill, Drunky Duck, Batt Baterton, além do já mencionado Chico.

Também relacionado com o
êxito da série está o vastíssimo
leque de autores consagrados, argumentistas e desenhadores, que abrilhantaram
as suas páginas: Guido Nolitta, G.L. Bonelli, Decio Canzio, Alfredo Castelli,
Ade Capone, Mauro Boselli ou Moreno Burattini, escritores, e Franco Donatelli,
Franco Bignotti, Marco Torricelli, Carlo Raffaele Marcello, Raffaele Della
Monica, Maurizio Dotti ou Marco Verni, desenhadores, entre tantos outros, e
claro, o criador gráfico, aquele que maior responsabilidade teve no sucesso do
herói, Gallieno Ferri!
Inspirado pelos grandes
autores clássicos dos anos 20, 30, do século passado, Alex

IMAGEM DE FERRI
Raymond, Phil Davis,
Ray Moore e Milton Carniff, Ferri era um desenhador muito versátil, detentor de
um traço muito detalhado e dinâmico, capaz de produzir desenhos muito
expressivos aliados a uma enorme capacidade de execução. Essas características
permitiram-lhe desenhar todo o tipo de aventuras nos mais diversificados
ambientes, e em simultâneo, cumprir os apertadíssimos prazos a que estava
sujeito, principalmente até 1967, época em que desenhou a quase totalidade das
pranchas, com a agravante de ter escrito, também, diversas aventuras, na fase
em que Nolitta se afastou devido às necessidades da editora.

Durante o período mais
conturbado da série, a famigerada “década perdida”, fase em que a série esteve
muito próxima do cancelamento, Ferri juntamente com Donatelli foram os grandes
baluartes, os grandes responsáveis por preservarem a identidade do personagem,
e por manterem os fãs interessados, pois o tipo de aventuras afastou-se da
fórmula idealizada por Nolitta6.
Nas duas últimas décadas,
não obstante o desenhador ter visto diminuir o número de trabalhos publicados,
ainda foi o desenhador com maior número de pranchas publicadas em cinco desses
anos, tendo o ultimo ocorrido em 2007, com 376 páginas.
As capas pelas quais Ferri
foi responsável desde o primeiro número é outro
aspeto onde salta à vista a importância do
desenhador no sucesso da série. Com objectos centrais bem detalhados,
contrastando com cenários rabiscados, preenchidos com sombras ou penumbras, as
suas capas eram apelativas, impactantes e diversificadas, devido a uma
utilização de cores vivas, e a uma escolha criteriosa das cenas, com uma
frequente variação de ângulos e enquadramentos para evitar repetições.
Mas não é necessário analisar,
detalhadamente, o seu percurso profissional, para perceber

Sergio Bonelli e Gallieno Ferri
a profundidade da
ligação deste autor, a Zagor. O próprio a declarou em diversas ocasiões!
Questionado sobre os melhores momentos da sua carreira de desenhador, o artista
genovês, referiu três momentos “Zagorianos”: O primeiro encontro com Sergio
Bonelli no longínquo ano de 1960 que lhe permitiu desenhar Zagor, e que,
reconheceu, lhe mudou a vida. O segundo momento, referiu-se a um época, ao
período clássico da série, e para as aventuras criadas na década de setenta,
que considerava graficamente melhor concebidas. Por último, a enorme satisfação
que teve em ver publicado a cores, praticamente todas as aventuras do herói na
Collezione Storica a Colori.

Se os números de Zagor são
deveras impressionantes para um personagem de BD, os de

PRANCHA DE FERRI
Gallieno Ferri parecem
impossíveis para um ser humano. Ao longo da sua carreira de desenhador produziu
mais de 20000 pranchas. O ano mais produtivo foi 1962 em que viu publicadas
645, tendo ultrapassado a produção anual de meio milhar, em mais doze ocasiões.
É também o desenhador de Zagor mais publicado em 25 anos da sua existência, e o
autor da SBE com a ligação mais longa a um único personagem. Produziu ainda
todas as capas desde que adotado o formato atual e a quase totalidade das
quatro séries de tiras7,
ultrapassando a barreira de um milhar.

Com 87 anos de vida e
apesar das limitações inerentes à avançada idade, principalmente ao nível da
destreza de movimentos e da visão, capacidades indispensáveis para o desempenho
da sua profissão, Ferri continuava apaixonado pelo seu trabalho, orgulhoso da
sua obra, dando mostras de não pensar em reformar-se, desenhando as capas para
todas as séries de Zagor. Num artigo publicado em 2013 é referido que ainda
desenhava cerca de duzentas páginas por ano, (marca impressionante para
qualquer desenhador, de qualquer idade), e que continuava a ser um prazer
desenhar na sua prancheta, da qual não conseguia manter-se afastado, nem mesmo
no período de férias em Recco onde vivia. Amante do mar e dos desportos aquáticos e náuticos,
frequentava a praia ou dava um passeio, mas após algumas horas acabava sempre
por se sentar na sua mesa de desenho, onde se sentia verdadeiramente feliz.
Falecido a 02 de Abril em Génova, cidade onde nasceu,
Gallieno Ferri foi um extraordinário desenhador que à muito era considerado uma
lenda da BD Italiana! Um exemplo de vitalidade e de vida, para todos nós, e uma
fonte de inspiração para outras gerações de artistas, pela paixão com que
exercia o seu trabalho, e pela dedicação a Zagor, personagem a que se manteve
continuamente ligado desde a sua criação, numa união de cinquenta e cinco anos,
que só seria quebrada por algo inevitável, como a morte. Artistas como Moreno
Burattini, cuja história é sobejamente conhecida, de como este apaixonado
leitor se tornou, também, apaixonado escritor principal das série, ou, o já
apelidado de novo Ferri, igualmente fã de Zagor, Marco Verni, que quando
criança ouvia de seus pais: “estude meu filho, que Zagor não vai colocar comida
a sua mesa”. Verni seguiu o seu sonho de criança mesmo não contando com o apoio
inicial dos pais, tornando-se, atualmente, um dos desenhadores mais apreciados,
sendo o seu traço muito semelhante ao de Ferri, do qual é admirador confesso.
Na área da música, o roqueiro Graziano Romani é outra das personalidades, tal
como inúmeras outras neste país com grande apreço pela BD, que se sente
influenciada pelas aventuras deste personagem, e pelo mestre Ferri. Em 2009
produziu um álbum com a capa do artista genovês dedicado a este herói e,
recentemente, escreveu o livro, “The art of Ferri”, dedicado ao desenhador.
Como herança para todos os
amantes da banda desenhada Ferri deixa dezenas de histórias, centenas de capas
e milhares de pranchas, que fizeram sonhar, um pouco por todo o mundo, e ao
longo de várias décadas, milhares de crianças e jovens, mas também
adultos, porque as aventuras deste herói foram concebidas para todas as idades.
Mas mais importante que a quantidade é a qualidade, e nesse aspecto, o seu
legado é também riquíssimo, pois inclue algumas das mais
belas aventuras do personagem. Histórias intemporais, como, “Oceano”, “A
marcha do desespero”, “Kandrax, o mago”, “Dharma, a bruxa”, ou “O retorno do
vampiro”, que eu, tal como a grande maioria dos fãs, sempre vou recordar.
NOTA FINAL:
O sucesso
do personagem e a carreira do desenhador, estão de tal modo interligados, que
não é possível atribui-lo a um, sem incluir o outro. O curioso é
que tudo começou com uma simples entrevista para conseguir um trabalho! Incrível
como determinados eventos, aparentemente triviais e sem nenhuma importância, se
revelam, afinal, marcantes, decisivos e influentes para toda uma vida! A
vida e a carreira de Gallieno Ferri foi vítima de um desses episódios: O
encontro com Sergio Bonelli no seu escritório em 1960! Uma entrevista
para um emprego como tantas outras a que o desenhador deve ter ido, tal como
qualquer um de nós. Fosse o destino, acaso ou coincidência, o que é um
facto, é que esse simples evento, esse banal acontecimento, foi determinante
para a carreira do desenhador, para o “nascimento” do personagem, e para a
história de ambos tal como as conhecemos hoje.
LEGENDA:
1 O sétimo número da
primeira série de “striccias”, “La morte invisibile” publicado em 15 de
Setembro de 1961 já foi escrito por Gallieno Ferri. As publicações na época
possuíam o formato de talões de cheques constituídas de uma tira por página.
Zagor teve 4 séries neste formato com 80 páginas por edição totalizando 239
edições, publicadas entre 15 de Junho de 1961 e 10 de Novembro de 1970.
2 O Nº 27 da primeira série de “striccias”.
3 O Nº 182 de ZAGOR apresenta na lombada o Nº 233
correspondente ao número ZENITH. Em Julho de 1965, o número 52 da revista ZENITH
GIGANTE inicia a reedição das aventuras de Zagor, desta vez com 3 tiras por
página, no famigerado formato Bonelli, naquele que se tornaria o primeiro
número da atual coleção do personagem. Zagor vai monopolizar esta publicação a
partir desse número, mantendo, no entanto, na lombada, a numeração da coleção ZENITH,
que é desfasada de 51 números da numeração de ZAGOR. Esta coleção vai
republicar as aventuras das quatro séries até ao número 68, “Lo spettro!”, em
Fevereiro de 1971, publicando posteriormente apenas histórias inéditas. As
reedições da coleção mensal apenas apresentam o numero ZAGOR.
4 “Hora Zero”, aventura de Guido Nolitta e Gallieno Ferri
publicada no ZAGOR italiano números 107 a 109 em 1974. No Brasil foi publicada
apenas por uma única vez em 1987 nos números 30 e 31 da coleção ZAGOR da Globo.
5
Apesar de qualificada como a pior fase do
personagem em Itália, nós Portugueses e Brasileiros temos muita dificuldade em
avalia-la, pois nunca tivemos oportunidade de acompanhar as aventuras
sequencialmente, e diversas histórias continuam inéditas no Brasil. Das
coleções publicadas no Brasil apenas ZAGOR ESPECIAL RECORD tinha como objetivo
publicar todas as histórias cronologicamente, tendo sido cancelada no sétimo
número sem ter atingido essa fase.
6 ZAGOR Italiano Nº 345. No Brasil
foi publicado pela Mythos no Nº 11 de ZAGOR EXTRA, em Fevereiro de 2005.
7 O conceituado blogue DIMEWEB
atribui a Ferri 233, das 239 capas que compõem as 4 séries de “striccias”.
BIOGRAFIA DE GALIENNO FERRI:
Nascido
em Genova, Itália, em 21 de Março de 1929, Gallieno Ferri é um dos desenhadores
mais prestigiados, num dos países onde a BD têm maior aceitação a nivel
mundial. No início da sua vida profissional, e antes de se dedicar à nona arte,
trabalhou alguns anos como agrimensor, tendo começado a sua carreira de desenhador
quase por acaso, após ter sido selecionado num concurso para novos talentos
promovido pela editora de Giovanni De Leo. Para essa mesma editora, com o
argumento do próprio De Leo e, utilizando o pseudónimo de Fergal, Ferri vai
desenhar em 1949, o seu primeiro personagem: Il Fantasma Verde. Seguem-se Piuma
Rossa, um western, e Maskar, personagem criado em conjunto com De Leo para
substituir Fantax. Série, que apesar do enorme sucesso obtido, devido à censura
vigente e por ser excessivamente violenta, teve de ser cancelada! Maskar não
passava de uma “cópia” do Fantax expurgada dos excessos de violência que
motivaram o cancelamento!
Durante o
periodo 1949 e 1951, além do trabalho normal na editora, Ferri envolve-se
noutros projetos com De Leo, como Big Bill, Le Casseur e Robin Hood,
publicações licenciadas pela francesa de Pierre Mouchott, a S.E.R.
Entre
1952 e 1953, mais uma vez com De Leo, e numa co-produção com Mouchott, criam
Thunder Jack. Posteriormente, após a interrupção da série em Itália, Ferri vai
continuar a desenhar o personagem apenas para o mercado francês. Nessa série o
desenhador vai adotar, pela primeira vez, as próprias feições para a composição
do protagonista. Processo que vai repetir mais tarde com Zagor! Como
reconhecimento do seu trabalho em França, Ferri é convidado por Mouchott a
criar outros personagens especificamente para o mercado gaulês e para a S.E.R..
Surgem então, fruto dessa ligação, Kid Colorado, Jim Puma e Tom Tom, este
ultimo publicado mais tarde, em Itália, pela De Leo.
No
final da década de cinquenta, do seculo passado, o desenhador decide voltar a
trabalhar, também, para o mercado italiano, iniciando a colaboração com a
redação do Il Vittorioso, desenhando diversas histórias de Capitan Walter e de
Jolly.
Em
1960 conhece Sergio Bonelli, o jovem editor da Edizioni Araldo, a atual Sergio
Bonelli Editore, começando por desenhar alguns episódios de Giubba Rosa
escritos pelo pai de Sergio, Gianluigi Bonelli. Após a conclusão desses
trabalhos, e não existindo outros argumentos disponíveis, Nolitta cria,
juntamente com Ferri, um personagem especificamente para o desenhador: Zagor!
Em
1975, novamente com Guido Nolitta, criam Mister No. Ferri desenha apenas a
história inicial e as primeiras cento e quinze capas da série.
Devido
ao enorme sucesso de Chico, em 1979 é lançada uma nova coleção dedicada a este
personagem: CICO STORY. Nolitta e Ferri são os responsáveis pelos primeiros
cinco números da coleção.
Entre
1998 e 2000 Ferri desenha as capas das três últimas edições especiais de “Il
Comandante Mark”.
A sua carreira de desenhador ficaria
definitivamente ligada ao primeiro encontro com Sergio Bonelli em 1960, e ao
personagem por eles criado, Zagor! Após a publicação do primeiro número em
1961, até ao seu falecimento em 02 de Abril de 2016, decorridos cerca de
cinquenta e cinco anos, Ferri manteve-se a desenhar o “O rei de Darkwood”, produzindo
mais de cento e vinte histórias, em mais de vinte mil pranchas e a quase
totalidade das capas, de todas as séries, ultrapassando o milhar de unidades.
Com 87 anos de vida, Gallieno Ferri
faleceu em Génova, cidade natal, em 02 de Abril de 2016.
PRINCIPAIS
REFERENCIAS:
http://thebonelliemporium.blogspot.pt/2016/04/ciao-ferri.html
Zagor 25 anos no Brasil, edição especial comemorativa
Cinquenta anos de aventuras, por Moreno Burattini
PS: Texto publicado na revista Clube Tex Portugal Nº 5 em Dezembro de 2016