Nota
introdutória
A
aventura intitulada de “Caçada humana[1]”
publicada em Itália no ano de 1976, na coleção mensal de Tex, tornou-se um
marco histórico na vida editorial do personagem. Pela primeira vez foi
publicada uma história de Tex Willer escrita por outro argumentista que não
Gian Luigi Bonelli, que até então, com 67 anos de idade, havia escrito a
totalidade das narrativas publicadas nos 182 números da coleção.
Na
verdade, não se tratou de uma situação planeada mas sim de uma emergência! Um
ano antes, o criador do personagem sofreu uma queda ao praticar esqui, que associado
à avançada idade, o forçou a reduzir o volume de trabalho, pelo que houve
necessidade de encontrar outro escritor, que numa primeira fase o substituísse
enquanto recuperava, e, posteriormente, com ele partilhasse a difícil tarefa de
escrever as aventuras de Tex Willer.
Sergio
Bonelli, o filho de Gianluigi, sob o pseudónimo de Guido Nolitta, foi o
voluntário para suprir esta necessidade e responsável pela “heresia” de o substituir,
e durante os 9 anos que se seguiram, pela criação de 16[2]
histórias, em que procurou imitar a forma de contar histórias do progenitor
para não descaracterizar o personagem e as suas aventuras. Todavia, e apesar de
contar com a preciosa ajuda do seu pai em determinadas cenas e diálogos, e
apesar dos seus esforços em esconder o seu estilo narrativo, a verdade é que obteve
um relativo sucesso, pois o seu herói e as suas histórias são muito diferentes
das escritas pelo seu pai, como poderemos constatar na análise que se segue a
uma das suas narrativas.
A
flecha quebrada
O exército
que tinha conseguido recuperar a maioria dos corpos dos militares falecidos,
pouco tempo após a batalha, graças à assinatura de um tratado apressado em que
cedeu aos Sioux, o território onde decorreu o confronto, já havia desistido de
recuperar o corpo do capitão. No entanto, o surgimento de Tom Rampling –
sargento que integrava o destacamento e tinha sido dado como morto – que
recentemente recuperara a memória e que afirmava conhecer a exata localização
do cadáver, bem como as pressões exercidas pelos familiares do capitão,
forçaram o comandante do forte a autorizar a expedição, e a efetuar o pedido a
Tex para a liderar.
A
entrada de qualquer expedição, sobre qualquer pretexto, no território dos
Sioux, principalmente na zona das colinas, que passou a ser considerada sagrada
para os índios após a batalha, já tinha sido recusada por Ongewa, chefe dos
Sioux que os liderou na contenda com os soldados. Ainda assim, o major Stanton
espera que Tex, devido ao seu prestígio junto dos povos indígenas devido ao
facto de ser também Águia da Noite, o chefe dos Navajos, possa demover Ongewa dessa
decisão.
A
expedição liderada por Tex e composta por Donald e Steve Larrimer, irmão e
filho do capitão falecido, cinco soldados e o sargento Tom Rampling, desloca-se
até à fronteira do território Sioux onde encontra as primeiras dificuldades, e onde
Tex começa a demonstrar, aos restantes elementos do grupo, os motivos por ter
sido escolhido como líder.
Este
é o ponto de partida de “A flecha quebrada[3]”,
publicada
pela primeira vez em Itália no verão de 1982, nos números 261 e 262 da coleção
mensal de Tex, com os títulos “La freccia spezzata” e “Le colline della paura”.
Nesta primeira fase da história, o
autor utiliza um ritmo narrativo lento, com as pranchas sobrecarregadas de
cartuchos e diálogos, procurando inserir o leitor na aventura. Apesar disso já
são visíveis marcas nolittianas, como a ironia que tanto aprecia e que está bem
patente nas provocações entre Tex e Carson, e também nas que estes lançam ao
major Stanton, quando este faz o convite a Tex para liderar a expedição, ou nas
críticas que faz ao comportamento dos militares[4].
A
destacar também forma como o autor se “livra” de Carson! Em contraposição de
ideias com o seu pai, Nolitta prefere, claramente, narrativas com o herói a solo
ou apenas acompanhado por um dos seus parceiros. Neste caso preferiu,
visivelmente, a narrativa a solo, uma vez que coloca Carson fora da expedição,
logo nas páginas iniciais, sobre o pretexto de esperar pelas carroças de
mantimentos.
Aparentemente,
a grande dificuldade que esperava Águia da Noite nesta missão era a obtenção do
Saken dos Sioux, de autorização para entrar nas Blue Hills. Suposição que se
revela completamente errada! Logo na fronteira do território dos Sioux, o
espantalho com uma caveira humana envergando uma jaqueta do exército, e que
marca a entrada no território, despoleta a indignação e o nervosismo entre os
integrantes do grupo, forçando Tex a usar a força para acalmar os soldados.
Mostrando-se conhecedor dos hábitos e costumes indígenas, Tex interpreta
corretamente o sinal e cumpre o ritual, impedindo, desta forma, o ataque à
expedição pelos Sioux que se encontravam escondidos no bosque próximo, e
conseguindo que os índios o levem à presença de Ongewa. Falta no entanto
convencer o saken dos Sioux, o que não aparenta ser fácil: fruto da vitória
sobre os soldados, outras tribos de guerreiros juntaram-se aos Sioux pelo que
as decisões são agora tomadas em concelho de chefes, e, Mahonga, o chefe dos
Tetons, recusa a entrada dos brancos nas Blue Hills, ofendendo Águia do Noite apelidando-o
de “falso amigo do povo vermelho”, arrancando-lhe do peito o símbolo da
irmandade dos povos vermelhos. Como consequência desta ação violadora das leis
da hospitalidade, Ongewa autoriza a realização de um duelo entre os dois, no
círculo da morte, que Tex, apesar da sabotagem da machadinha efetuada pelo
feiticeiro Skinpah, vence, poupando no entanto a vida a Mahonga.
Este
trecho da narrativa é muito mais intenso, repleto de ação, em que Nolitta
apresenta um Tex que demonstra capacidades de liderança, duro, implacável,
impulsivo e que não têm dúvidas. Vemo-lo na forma como impôs a disciplina aos
integrantes do grupo quando se aproximaram da fronteira do território dos
Sioux, mas também no modo como venceu o duelo e como castigou Skimpah pela
“brincadeira” na preparação da machadinha para o duelo. O herói que nos é
apresentado nestas cerca de quarenta páginas foge um pouco ao padrão nolittiano
e está bem mais próximo do herói clássico idealizado por seu pai.
Após
o duelo com Mahonga, e obtida a permissão para entrar nas Blue Hills, as
dificuldades da missão pareciam, novamente, estar ultrapassadas, mas Nolitta
decide “complicar”, e introduz um novo elemento na narrativa: o elemento
fantástico! É Ongewa quem alerta Tex sobre a existência de um espirito, que
provocou a morte de três guerreiros na zona para onde se dirige a expedição,
tendo provocado ferimentos graves em outros dois, que o descreveram como um ser
metade homem metade lobo, ágil, forte, cruel como uma besta, e que parece
defender o território de qualquer intrusão. O Espirito maligno das Blue Hills!
A referência ao espirito é muito breve, limita-se a poucas vinhetas e o leitor,
tal como o herói, rapidamente o esquecem.
A
viagem para as colinas é marcada por duas trágicas mortes como consequência de
dois incidentes, aparentemente acidentais. A queda fatal de Wood – um dos
soldados – no trilho de acesso ao penhasco onde o grupo tinha decidido passar a
noite, e a morte de Douglas – outro dos soldados – vítima de picada de uma
cascavel que se escondeu na sua sacola. Entre os dois incidentes, Douglas
acusou Peters – um terceiro soldado – de ser o responsável pela morte de Wood tendo
sido forçado a calar-se por ação de Rampling. Presumivelmente para impor a
ordem! E tentou, sem sucesso, falar a sós com Tex. Nenhuma destas situações
deixaram Tex em alerta, nem mesmo quando, logo após ter sido picado pela
cascavel, Douglas não permitiu que Rampling o tratasse, tendo-o apelidado de “maldito assassino”.
As duas mortes, as situações
em que ocorreram, e o comportamento de Wood, não teriam passado despercebidos
ao Tex de Gianluigi. Mas o herói de Nolitta tem outras características, e este
trecho da narrativa é bem demonstrativo do herói nolittiano: moderno, humano,
que comete erros de avaliação e que se deixa surpreender. Ainda neste excerto podemos
observar outra marca distinta do autor, esta no modo de contar histórias: a
forma como “esconde” os eventos do leitor, só os revelando no momento em que o
herói tem conhecimento dos mesmos - o complô orquestrado pelos soldados e a
existência de uma caixa contendo o dinheiro das guarnições do norte que estes
procuravam recuperar.
Com os Larrimer presos e o
herói inconsciente vítima da coronhada aplicada por Rampling, Nolitta decide,
finalmente, revelar a verdade sobre os acontecimentos que culminaram no
massacre das Blue Hills. Começa por nos apresentar a versão de Rampling, num flashback, em que o próprio Rampling
conta, aos restantes elementos do grupo, as razões que o motivaram a regressar
ao local da chacina, o que realmente aconteceu na noite que antecedeu a batalha,
e como e porquê o capitão Larrimer foi morto.
Após terminar o relato dos
acontecimentos da fatídica noite, o sargento confessa, também, a utilização dos
Larrimer e do Chefe dos Navajos como instrumentos para a recuperação do
dinheiro. As revelações sucedem-se, com Rampling a desdizer a versão inicial,
de ser conhecedor do local exato da localização do corpo do capitão, e a assumir
a responsabilidade das mortes de Wood e Douglas por se recusarem a participar
na intriga, assim como a intenção de não deixar testemunhas.
Desde que o grupo chegou ao
local da batalha que se sente a tensão no ar, a paisagem é sinistra, tétrica, como
se existisse algo sobrenatural no local, o uivo dos coiotes torna o local ainda
mais assustador e Tex decide aproveitar esse ambiente para deixar os soldados
ainda mais nervosos, revelando-lhes o que Ongewa lhe tinha dito quando
autorizou a expedição: que algo muito estranho habita a região! Inclui na
descrição palavras como “Fantasmas,
espíritos malignos e feitiçarias” para potenciar o medo nos integrantes do
grupo.
Nesta fase da aventura
Nolitta decide acelerar o ritmo narrativo, os acontecimentos, agora, sucedem-se
uns a seguir aos outros, sem pausas, e os volte-faces
também. Aproveitando a distração dos soldados provocada pela recuperação da
caixa, e pelo estado de nervosismo em que se encontravam, devido ao coiote que
não para de os atormentar com os seus uivos lamentosos, Tex consegue
libertar-se e liquidar os dois soldados restantes, no entanto, quando parecia
que ia retomar o controlo da situação, Rampling faz Steve refém ameaçando-o com
uma faca no pescoço forçando Tex a render-se. Segue-se um novo volte-face, pois o sargento nem tem
tempo de retomar o controlo da situação. Surgido de uma moita próxima, o
Espirito das Blue Hills neutraliza Rampling com uma pancada de machadinha na
cabeça, e mantem Tex sobre ameaça de uma pistola.
O leitor fica novamente
baralhado pelos acontecimentos e reformula novamente a questão! Quem é Richard
Larrimer? Um canalha capaz de sacrificar a vida e tomar ações heroicas ou um
herói que teve um momento de fraqueza?
O desfecho, tal como toda a
aventura, é puramente nolittiano e muito diferente do “final feliz” clássico. A
narrativa conclui-se com os sobreviventes discutirem que versão do que se
passou nas colinas deve ser revelada quando regressarem ao forte Washakie, e
como esse conhecimento vai afetar a reputação do capitão, dos familiares, dos
restantes militares falecidos na batalha, e do exército. Revelar verdade ou
mentir? É Tex, como líder da expedição, que toma a decisão, no mínimo polémica,
mas que visa favorecer o aspeto humano, e impõe a versão a revelar, não sem
antes criticar fortemente os Larrimer pelas suas opiniões.
“A flecha quebrada” ou “O
preço da desonra[5]”,
titulo com que foi publicada na Collezione Storica a Colori, tem apenas 172
pranchas e é a segunda aventura de Tex mais curta escrita por Sergio Bonelli.
No entanto, e apesar de ser uma história que pode ser considerada “pequena”
para os padrões nolittianos, é uma narrativa que representa muito bem a típica
aventura do autor, pois inclui a maioria das particularidades e recursos
estilísticos utilizados pelo próprio, faltando, talvez, a utilização mais
frequente da narração silenciosa e a inclusão de referências a fatos ou a
personalidades históricas para a imagem ficar completa.
Nota
final
Guido Nolitta tinha um
estilo narrativo e uma forma de contar histórias muito peculiar e que me agrada
particularmente. A utilização frequente da ironia e comicidade, presente em
quase todas as suas narrativas, a forma como misturava os diversos géneros
literários, alguns aparentemente inconciliáveis, como o cómico e o terror, ou
como criava suspense em torno de eventos ou dos responsáveis mantendo o leitor
e o herói na ignorância, eram algumas dessas características, porventura as
mais marcantes.
Em minha opinião não restam
dúvidas de que o Tex bonelliano é muito diferente do nolittiano. Só pela
análise de “A flecha quebrada” se percebem a maioria das diferenças existentes.
Mas o facto de Sergio não ter conseguido recriar com êxito o estilo narrativo e
o tipo de narrativas de seu pai não significa que o autor não tenha obtido
sucesso ao escrever as aventuras de Tex Willer. Bem pelo contrário! Não
obstante a pressão que sentia ao substituir o progenitor como salientou numa
entrevista publicada na obra “Tex, tra la legenda e il mito” ao declarar: “A personagem criada pelo meu pai
representou para mim uma aflição (…) sentia-me extremamente emocionado perante
o pesado fardo de ter que substituir um grande autor (…) ”; Não obstante as
dificuldades em seguir o seu estilo como confessou: “ (…) tive de trabalhar duramente na realização destas histórias, logo
a partir daquele momento em que continuamente me questionava sobre a maneira em
como elas seriam escritas pelo seu primeiro autor. Escrever Tex foi para mim
muito difícil, seja pela dificuldade em reproduzir o carácter e o comportamento
do protagonista, seja por ter que inventar aqueles diálogos (…) ”; A
verdade é que Sergio superou todas as expetativas, tendo criado algumas das
mais belas histórias de sempre, e uma versão alternativa do personagem que
ainda hoje rivaliza com a versão do criador, pela melhor de sempre.
[1]
“Caccia all`uomo”, edições 183 a185 TEX mensal italiano, Jan-Mar 1976, com desenhos
de Fernando Fusco. No Brasil, “Caçada humana” publicada em TEX 68 e 69, TEX 2ª
Edição 68 e 69, TEX COLEÇÃO 235 a 237 e TEX ED. HISTÓRICA 92.
[2]
Nolitta escreveu mais 3 histórias de Tex entre 1993 e 1999, totalizando 19
aventuras do herói.
[3] No
Brasil foi publicada na coleção TEX 167 e 168 e no TEX COLEÇÃO 314 e 315.
[4]
Primeiro por os militares classificarem os confrontos com os índios conforme
obtêm a vitória (utilizam “batalha”) ou saem derrotados (“massacre”). Segundo
pela forma como o exército subjuga os povos indígenas à sua vontade,
aproveitando-se das suas necessidades, para em troca de cobertores, carne seca
e bugigangas, conseguir os seus intentos: neste caso entrar em território
considerado sagrado pelos índios.
[5] “Il
prezo de disonore” Titulo com que foi publicado em Tex Collezione Storica a
Colori Nº108.
PS: Texto publicado na revista Clube Tex Portugal Nº 11 em Dezembro de 2019
PS: Texto publicado na revista Clube Tex Portugal Nº 11 em Dezembro de 2019