Translate

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

A FLECHA QUEBRADA - TÍPICA AVENTURA NOLITTIANA

Nota introdutória

A aventura intitulada de “Caçada humana[1]” publicada em Itália no ano de 1976, na coleção mensal de Tex, tornou-se um marco histórico na vida editorial do personagem. Pela primeira vez foi publicada uma história de Tex Willer escrita por outro argumentista que não Gian Luigi Bonelli, que até então, com 67 anos de idade, havia escrito a totalidade das narrativas publicadas nos 182 números da coleção.

Na verdade, não se tratou de uma situação planeada mas sim de uma emergência! Um ano antes, o criador do personagem sofreu uma queda ao praticar esqui, que associado à avançada idade, o forçou a reduzir o volume de trabalho, pelo que houve necessidade de encontrar outro escritor, que numa primeira fase o substituísse enquanto recuperava, e, posteriormente, com ele partilhasse a difícil tarefa de escrever as aventuras de Tex Willer.

Sergio Bonelli, o filho de Gianluigi, sob o pseudónimo de Guido Nolitta, foi o voluntário para suprir esta necessidade e responsável pela “heresia” de o substituir, e durante os 9 anos que se seguiram, pela criação de 16[2] histórias, em que procurou imitar a forma de contar histórias do progenitor para não descaracterizar o personagem e as suas aventuras. Todavia, e apesar de contar com a preciosa ajuda do seu pai em determinadas cenas e diálogos, e apesar dos seus esforços em esconder o seu estilo narrativo, a verdade é que obteve um relativo sucesso, pois o seu herói e as suas histórias são muito diferentes das escritas pelo seu pai, como poderemos constatar na análise que se segue a uma das suas narrativas.
A flecha quebrada

No forte Washakie, Wyoming, enquanto aguarda com Kit Carson a caravana que transporta os mantimentos para os seus Navajos, Tex é persuadido por este e pelo comandante do forte, o major Stanton, a liderar uma pequena expedição às Blue Hills, em pleno território Sioux, com o objetivo de recuperar os restos mortais do capitão Richard Larrimer - morto um ano antes, juntamente com os vinte e cinco soldados e dois oficiais que compunham um destacamento do 5º de cavalaria.
O exército que tinha conseguido recuperar a maioria dos corpos dos militares falecidos, pouco tempo após a batalha, graças à assinatura de um tratado apressado em que cedeu aos Sioux, o território onde decorreu o confronto, já havia desistido de recuperar o corpo do capitão. No entanto, o surgimento de Tom Rampling – sargento que integrava o destacamento e tinha sido dado como morto – que recentemente recuperara a memória e que afirmava conhecer a exata localização do cadáver, bem como as pressões exercidas pelos familiares do capitão, forçaram o comandante do forte a autorizar a expedição, e a efetuar o pedido a Tex para a liderar. 

A entrada de qualquer expedição, sobre qualquer pretexto, no território dos Sioux, principalmente na zona das colinas, que passou a ser considerada sagrada para os índios após a batalha, já tinha sido recusada por Ongewa, chefe dos Sioux que os liderou na contenda com os soldados. Ainda assim, o major Stanton espera que Tex, devido ao seu prestígio junto dos povos indígenas devido ao facto de ser também Águia da Noite, o chefe dos Navajos, possa demover Ongewa dessa decisão.
A expedição liderada por Tex e composta por Donald e Steve Larrimer, irmão e filho do capitão falecido, cinco soldados e o sargento Tom Rampling, desloca-se até à fronteira do território Sioux onde encontra as primeiras dificuldades, e onde Tex começa a demonstrar, aos restantes elementos do grupo, os motivos por ter sido escolhido como líder.

Este é o ponto de partida de “A flecha quebrada[3]”, publicada pela primeira vez em Itália no verão de 1982, nos números 261 e 262 da coleção mensal de Tex, com os títulos “La freccia spezzata” e “Le colline della paura”. Nesta primeira fase da história, o autor utiliza um ritmo narrativo lento, com as pranchas sobrecarregadas de cartuchos e diálogos, procurando inserir o leitor na aventura. Apesar disso já são visíveis marcas nolittianas, como a ironia que tanto aprecia e que está bem patente nas provocações entre Tex e Carson, e também nas que estes lançam ao major Stanton, quando este faz o convite a Tex para liderar a expedição, ou nas críticas que faz ao comportamento dos militares[4].

A destacar também forma como o autor se “livra” de Carson! Em contraposição de ideias com o seu pai, Nolitta prefere, claramente, narrativas com o herói a solo ou apenas acompanhado por um dos seus parceiros. Neste caso preferiu, visivelmente, a narrativa a solo, uma vez que coloca Carson fora da expedição, logo nas páginas iniciais, sobre o pretexto de esperar pelas carroças de mantimentos.

Aparentemente, a grande dificuldade que esperava Águia da Noite nesta missão era a obtenção do Saken dos Sioux, de autorização para entrar nas Blue Hills. Suposição que se revela completamente errada! Logo na fronteira do território dos Sioux, o espantalho com uma caveira humana envergando uma jaqueta do exército, e que marca a entrada no território, despoleta a indignação e o nervosismo entre os integrantes do grupo, forçando Tex a usar a força para acalmar os soldados. Mostrando-se conhecedor dos hábitos e costumes indígenas, Tex interpreta corretamente o sinal e cumpre o ritual, impedindo, desta forma, o ataque à expedição pelos Sioux que se encontravam escondidos no bosque próximo, e conseguindo que os índios o levem à presença de Ongewa. Falta no entanto convencer o saken dos Sioux, o que não aparenta ser fácil: fruto da vitória sobre os soldados, outras tribos de guerreiros juntaram-se aos Sioux pelo que as decisões são agora tomadas em concelho de chefes, e, Mahonga, o chefe dos Tetons, recusa a entrada dos brancos nas Blue Hills, ofendendo Águia do Noite apelidando-o de “falso amigo do povo vermelho”, arrancando-lhe do peito o símbolo da irmandade dos povos vermelhos. Como consequência desta ação violadora das leis da hospitalidade, Ongewa autoriza a realização de um duelo entre os dois, no círculo da morte, que Tex, apesar da sabotagem da machadinha efetuada pelo feiticeiro Skinpah, vence, poupando no entanto a vida a Mahonga.
Este trecho da narrativa é muito mais intenso, repleto de ação, em que Nolitta apresenta um Tex que demonstra capacidades de liderança, duro, implacável, impulsivo e que não têm dúvidas. Vemo-lo na forma como impôs a disciplina aos integrantes do grupo quando se aproximaram da fronteira do território dos Sioux, mas também no modo como venceu o duelo e como castigou Skimpah pela “brincadeira” na preparação da machadinha para o duelo. O herói que nos é apresentado nestas cerca de quarenta páginas foge um pouco ao padrão nolittiano e está bem mais próximo do herói clássico idealizado por seu pai.
Após o duelo com Mahonga, e obtida a permissão para entrar nas Blue Hills, as dificuldades da missão pareciam, novamente, estar ultrapassadas, mas Nolitta decide “complicar”, e introduz um novo elemento na narrativa: o elemento fantástico! É Ongewa quem alerta Tex sobre a existência de um espirito, que provocou a morte de três guerreiros na zona para onde se dirige a expedição, tendo provocado ferimentos graves em outros dois, que o descreveram como um ser metade homem metade lobo, ágil, forte, cruel como uma besta, e que parece defender o território de qualquer intrusão. O Espirito maligno das Blue Hills! A referência ao espirito é muito breve, limita-se a poucas vinhetas e o leitor, tal como o herói, rapidamente o esquecem.
A viagem para as colinas é marcada por duas trágicas mortes como consequência de dois incidentes, aparentemente acidentais. A queda fatal de Wood – um dos soldados – no trilho de acesso ao penhasco onde o grupo tinha decidido passar a noite, e a morte de Douglas – outro dos soldados – vítima de picada de uma cascavel que se escondeu na sua sacola. Entre os dois incidentes, Douglas acusou Peters – um terceiro soldado – de ser o responsável pela morte de Wood tendo sido forçado a calar-se por ação de Rampling. Presumivelmente para impor a ordem! E tentou, sem sucesso, falar a sós com Tex. Nenhuma destas situações deixaram Tex em alerta, nem mesmo quando, logo após ter sido picado pela cascavel, Douglas não permitiu que Rampling o tratasse, tendo-o apelidado de “maldito assassino”.

Tex só se apercebe que algo está errado quando Haig, um dos soldados sobreviventes, em conversa com Rampling, refere “ (…) não vai demorar muito a achar sua maldita caixa!”. O único objetivo da expedição é recuperar os restos mortais do capitão Larrimer, pelo que Tex - tal como o leitor - são completamente surpreendidos ao ouvirem falar em caixa. “Que caixa?” Questiona Tex, ou “Ei, espere aí! De que diabo de caixa está falando, Haig?”. Mas é tarde, muito tarde! Rampling aproveita a estupefação de Tex e coloca-o sem sentidos com uma coronhada.

As duas mortes, as situações em que ocorreram, e o comportamento de Wood, não teriam passado despercebidos ao Tex de Gianluigi. Mas o herói de Nolitta tem outras características, e este trecho da narrativa é bem demonstrativo do herói nolittiano: moderno, humano, que comete erros de avaliação e que se deixa surpreender. Ainda neste excerto podemos observar outra marca distinta do autor, esta no modo de contar histórias: a forma como “esconde” os eventos do leitor, só os revelando no momento em que o herói tem conhecimento dos mesmos - o complô orquestrado pelos soldados e a existência de uma caixa contendo o dinheiro das guarnições do norte que estes procuravam recuperar.

Com os Larrimer presos e o herói inconsciente vítima da coronhada aplicada por Rampling, Nolitta decide, finalmente, revelar a verdade sobre os acontecimentos que culminaram no massacre das Blue Hills. Começa por nos apresentar a versão de Rampling, num flashback, em que o próprio Rampling conta, aos restantes elementos do grupo, as razões que o motivaram a regressar ao local da chacina, o que realmente aconteceu na noite que antecedeu a batalha, e como e porquê o capitão Larrimer foi morto.

Já com Tex recuperado, Rampling termina a sua versão explicando como tinha decidido executar, sem sucesso, o plano atribuído por ele ao capitão. - Logo após esconder a caixa com o dinheiro fora surpreendido e ferido pelos Sioux que o deixaram como morto.
Após terminar o relato dos acontecimentos da fatídica noite, o sargento confessa, também, a utilização dos Larrimer e do Chefe dos Navajos como instrumentos para a recuperação do dinheiro. As revelações sucedem-se, com Rampling a desdizer a versão inicial, de ser conhecedor do local exato da localização do corpo do capitão, e a assumir a responsabilidade das mortes de Wood e Douglas por se recusarem a participar na intriga, assim como a intenção de não deixar testemunhas.

Desde que o grupo chegou ao local da batalha que se sente a tensão no ar, a paisagem é sinistra, tétrica, como se existisse algo sobrenatural no local, o uivo dos coiotes torna o local ainda mais assustador e Tex decide aproveitar esse ambiente para deixar os soldados ainda mais nervosos, revelando-lhes o que Ongewa lhe tinha dito quando autorizou a expedição: que algo muito estranho habita a região! Inclui na descrição palavras como “Fantasmas, espíritos malignos e feitiçarias” para potenciar o medo nos integrantes do grupo.
Nesta fase da aventura Nolitta decide acelerar o ritmo narrativo, os acontecimentos, agora, sucedem-se uns a seguir aos outros, sem pausas, e os volte-faces também. Aproveitando a distração dos soldados provocada pela recuperação da caixa, e pelo estado de nervosismo em que se encontravam, devido ao coiote que não para de os atormentar com os seus uivos lamentosos, Tex consegue libertar-se e liquidar os dois soldados restantes, no entanto, quando parecia que ia retomar o controlo da situação, Rampling faz Steve refém ameaçando-o com uma faca no pescoço forçando Tex a render-se. Segue-se um novo volte-face, pois o sargento nem tem tempo de retomar o controlo da situação. Surgido de uma moita próxima, o Espirito das Blue Hills neutraliza Rampling com uma pancada de machadinha na cabeça, e mantem Tex sobre ameaça de uma pistola.

Afinal não se tratava de uma superstição indígena! Armado com uma simples machadinha, trajando peles e envergando uma mascara de lobo, o Espirito das Blue Hills é bem real e surgiu no momento oportuno para retirar o protagonista de uma situação que parecia perdida, provocando o terceiro volte-face em pouquíssimas pranchas.
Nolitta parece querer continuar a “brincar” com o leitor! Mantendo Tex sobre a ameaça do revólver, O Espirito das Blue Hills retira a mascara e revela a sua identidade, surpreendendo todos, inclusive o sargento Rampling que se recusa a acreditar que o capitão Larrimer, que ele julgava ter morto, esteja vivo e seja o responsável pela destruição dos seus planos.

A entrada em cena do Espirito das Blue Hills salvando o herói de uma situação, aparentemente, sem saída possível, e a forma como o autor “escondeu” a existência do “Espirito”, até ao momento da sua aparição, levando o leitor a pensar que não passava de um mito, são claramente marcas nolittianas.

Perante as inúmeras questões de Donald, que não consegue compreender as atitudes do irmão, Richard conta sua versão dos fatos, e o porquê de ter permanecido nas Blue Hills encarnando o “Espirito”, confirmando a versão de Rampling que escondeu a caixa com o dinheiro dos pagamentos, e que tencionava recupera-la caso saísse vivo do local.

Os familiares do capitão ouvem incrédulos a sua versão, recusando-se a acreditar que o honrado capitão Larrimer, afinal não é muito diferente do sargento Rampling, e que ambos não passam de dois canalhas dispostos a matar por dinheiro. Quem é Richard Larrimer? É esta a questão que autor parece colocar ao leitor. Uma pessoa honesta, honrada, disposta a fazer sacrifícios uma vida inteira pela sua família e que num momento de grande tensão tem um momento de fraqueza, ou, um canalha e assassino que enquanto a vida lhe correu de feição foi capaz de disfarçar a sua verdadeira natureza até ao momento em que lhe surgiu a oportunidade para enriquecer? As dúvidas são imediatamente dissipadas! Assim que o capitão termina a sua versão, dispara dois tiros sobre o sargento Rampling, matando-o a sangue-frio, preparando-se para fazer o mesmo a Tex, eliminando desta forma a única testemunha que o poderia incriminar. Todavia, os gritos e os pedidos dos familiares do capitão para não o fazer, permitiram a Tex aproveitar-se da distração momentânea do capitão, desarma-lo e assumir o controlo da situação.

Com o herói com a situação controlada, e com a verdade sobre o que aconteceu nas Blue Hills esclarecida, poder-se-ia pensar que o desfecho estava próximo. Nada mais errado! Nolitta ainda têm mais questões para colocar ao leitor, pelo que recupera, para a ação, um inimigo de Tex que o leitor, provavelmente, já havia esquecido - Mahonga - e acrescenta mais cerca de 35 pranchas à narrativa, que vão baralhar, novamente, a questão de quem foi o capitão Larrimer e quem é o verdadeiro protagonista desta aventura.
Sentindo-se humilhado por ter perdido o duelo com Águia da Noite, Mahonga lidera um numeroso grupo de guerreiros no ataque aos poucos sobreviventes da expedição às colinas. Apesar das inúmeras baixas provocadas pelos tiros certeiros de Tex, a situação é desesperante e tudo leva a crer que o chefe índio irá conseguir os seus intentos. Mas eis que surge um novo volte-face com um protagonista inesperado: Richard Larrimer, o capitão ignóbil, ladrão e assassino.

O ataque liderado por Mahonga provoca dois feridos, Donald e Steve Larrimer, sendo que Steve é ferido com gravidade no ombro direito e necessita urgentemente de tratamento. Perante a necessidade de cuidados imediatos do seu filho, e percebendo que os índios se preparavam para atacar novamente, Richard é acometido pelo instinto paternal e decide envergar a mascara de lobo, e interpretar, novamente, e pela última vez, o papel do Espirito das Blue Hills, esperando que os supersticiosos índios se afastem das colinas e os deixem em paz. A ação heroica do homem, que pouco tempo antes assassinou o sargento Rampling, a sangue-frio, permite salvar os poucos sobreviventes do grupo e matar Mahonga, numa luta corpo a corpo, uma vez que os índios reagem como esperado e fogem assustados.
O leitor fica novamente baralhado pelos acontecimentos e reformula novamente a questão! Quem é Richard Larrimer? Um canalha capaz de sacrificar a vida e tomar ações heroicas ou um herói que teve um momento de fraqueza?

O desfecho, tal como toda a aventura, é puramente nolittiano e muito diferente do “final feliz” clássico. A narrativa conclui-se com os sobreviventes discutirem que versão do que se passou nas colinas deve ser revelada quando regressarem ao forte Washakie, e como esse conhecimento vai afetar a reputação do capitão, dos familiares, dos restantes militares falecidos na batalha, e do exército. Revelar verdade ou mentir? É Tex, como líder da expedição, que toma a decisão, no mínimo polémica, mas que visa favorecer o aspeto humano, e impõe a versão a revelar, não sem antes criticar fortemente os Larrimer pelas suas opiniões.

“A flecha quebrada” ou “O preço da desonra[5]”, titulo com que foi publicada na Collezione Storica a Colori, tem apenas 172 pranchas e é a segunda aventura de Tex mais curta escrita por Sergio Bonelli. No entanto, e apesar de ser uma história que pode ser considerada “pequena” para os padrões nolittianos, é uma narrativa que representa muito bem a típica aventura do autor, pois inclui a maioria das particularidades e recursos estilísticos utilizados pelo próprio, faltando, talvez, a utilização mais frequente da narração silenciosa e a inclusão de referências a fatos ou a personalidades históricas para a imagem ficar completa.
Nota final

Guido Nolitta tinha um estilo narrativo e uma forma de contar histórias muito peculiar e que me agrada particularmente. A utilização frequente da ironia e comicidade, presente em quase todas as suas narrativas, a forma como misturava os diversos géneros literários, alguns aparentemente inconciliáveis, como o cómico e o terror, ou como criava suspense em torno de eventos ou dos responsáveis mantendo o leitor e o herói na ignorância, eram algumas dessas características, porventura as mais marcantes.

Em minha opinião não restam dúvidas de que o Tex bonelliano é muito diferente do nolittiano. Só pela análise de “A flecha quebrada” se percebem a maioria das diferenças existentes. Mas o facto de Sergio não ter conseguido recriar com êxito o estilo narrativo e o tipo de narrativas de seu pai não significa que o autor não tenha obtido sucesso ao escrever as aventuras de Tex Willer. Bem pelo contrário! Não obstante a pressão que sentia ao substituir o progenitor como salientou numa entrevista publicada na obra “Tex, tra la legenda e il mito” ao declarar: “A personagem criada pelo meu pai representou para mim uma aflição (…) sentia-me extremamente emocionado perante o pesado fardo de ter que substituir um grande autor (…) ”; Não obstante as dificuldades em seguir o seu estilo como confessou: “ (…) tive de trabalhar duramente na realização destas histórias, logo a partir daquele momento em que continuamente me questionava sobre a maneira em como elas seriam escritas pelo seu primeiro autor. Escrever Tex foi para mim muito difícil, seja pela dificuldade em reproduzir o carácter e o comportamento do protagonista, seja por ter que inventar aqueles diálogos (…) ”; A verdade é que Sergio superou todas as expetativas, tendo criado algumas das mais belas histórias de sempre, e uma versão alternativa do personagem que ainda hoje rivaliza com a versão do criador, pela melhor de sempre.



[1] “Caccia all`uomo”, edições 183 a185 TEX mensal italiano, Jan-Mar 1976, com desenhos de Fernando Fusco. No Brasil, “Caçada humana” publicada em TEX 68 e 69, TEX 2ª Edição 68 e 69, TEX COLEÇÃO 235 a 237 e TEX ED. HISTÓRICA 92.
[2] Nolitta escreveu mais 3 histórias de Tex entre 1993 e 1999, totalizando 19 aventuras do herói.
[3] No Brasil foi publicada na coleção TEX 167 e 168 e no TEX COLEÇÃO 314 e 315.
[4] Primeiro por os militares classificarem os confrontos com os índios conforme obtêm a vitória (utilizam “batalha”) ou saem derrotados (“massacre”). Segundo pela forma como o exército subjuga os povos indígenas à sua vontade, aproveitando-se das suas necessidades, para em troca de cobertores, carne seca e bugigangas, conseguir os seus intentos: neste caso entrar em território considerado sagrado pelos índios.
[5] “Il prezo de disonore” Titulo com que foi publicado em Tex Collezione Storica a Colori Nº108.

PS: Texto publicado na revista Clube Tex Portugal Nº 11 em Dezembro de 2019

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

A OUTRA FACE

O jovem Andy Wilson fere com gravidade o xerife Tom Kenyon ao tentar detê-lo por homicídio. Tex Willer, que acompanhava o seu amigo xerife, também é surpreendido e não consegue evitar a fuga do jovem procurado. No rancho duplo B, situado nas proximidades de Springville, ninguém acredita na acusação de homicídio! Todos conhecem o jovem por Andy Morton, e todos o consideram honesto, trabalhador, amigo, e incapaz de magoar alguém. Após garantir que Tom se encontra bem e recolher informações sobre a possível localização de Andy, Tex parte na pista do foragido que tenta atravessar o deserto de Las Piedras e chegar à fronteira do México pelo trilho dos esqueletos. Andy escolheu este caminho inóspito, e por vezes mortal para os que o ousam atravessar, para se livrar dos perseguidores. A tentativa, no entanto, revela-se infrutífera, pois é capturado por Tex em pleno deserto e muito longe do almejado objetivo. 

O regresso a Springville é repleto de imprevistos e contratempos em que os dois, captor e preso, são obrigados a lutar juntos para salvar as próprias vidas. O tempo que passam juntos, o comportamento e as atitudes demonstradas pelo foragido, em que por mais do que uma vez salva a vida de Tex quando poderia tê-lo matado, livrando-se dessa forma do julgamento que o espera, e da sentença, que em ultimo caso poderia ser a forca, leva o ranger a pensar que o jovem Andy poderá estar inocente da acusação de homicídio, e que todos aqueles que bem o conhecem, poderão, afinal, estar certos: Andy Wilson não é nenhum assassino!

Culpado ou inocente? O final é surpreendente e não responde a esta questão. Infelizmente a passagem por Água Fria, a ultima povoação antes de Springville vai revelar-se trágica para o pobre fugitivo, alterando, completamente, o rumo espectável dos acontecimentos. 

Publicada em Itália no início de 1976, na coleção mensal de Tex, Caccia all`uomo, “Caçada humana” no Brasil, marca uma nova fase do herói com a entrada em cena de um novo argumentista da série, Sergio Bonelli, que interrompe um ciclo de quase três décadas em que as aventuras eram, exclusivamente, da autoria de Giovanni Luigi Bonelli, seu pai.

Após uma queda ao praticar esqui aos 68 anos de idade, Giovanni, o criador de Tex, vê-se obrigado a aceitar a sugestão de reduzir o volume de trabalho, de escrever 110 páginas, para a edição mensal do personagem. Sergio Bonelli, que assinava as suas históricas com o pseudónimo Guido Nolitta, para não ser identificado com o progenitor, foi o voluntário, e “Caçada humana” a primeira das 19 aventuras de Tex que Nolitta iria escrever até janeiro de 1999.

Na época a principal função de Sergio na editora era tratar de assuntos relacionados com a tipografia, distribuição, administração, correção de rascunhos, e escrever cerca de duzentas páginas por mês para Zagor e Mister No. Na verdade, como o próprio confidenciou, nos argumentos que escrevia de Águia da Noite contava com a preciosa ajuda do seu pai que os relia, alterava diálogos, e o aconselhava em determinadas cenas tentando, desta forma, não descaracterizar o personagem e as suas aventuras.

Apesar de “Caçada humana”, tal como as histórias seguintes escritas por Nolitta terem a assinatura de G. L. Bonelli, (somente nas reedições mais recentes os créditos foram atribuídos a Sergio), e apesar das revisões efetuadas pelo criador de Tex, e dos esforços de Nolitta em “esconder” o seu estilo narrativo, a muitos dos leitores, os mais ligados ao personagem, não passaram despercebidas as diferenças que, se olharmos com atenção, são demasiado evidentes.

Um herói mais bem-humorado, irónico, que trata o jovem foragido por “Cara de Anjo” em tom sarcástico, mas também mais introspetivo: Na emboscada que sofreu ao perseguir Andy após a fuga de Happy Fork[1] e quando está a lutar pela vida nas águas turbulentas[2] do riacho para onde foi atirado pelo jovem, na tentativa de recuperar, novamente, a liberdade, podemos “ouvir” os seus pensamentos, deduções e dúvidas. Mas não só, o Tex Nolittiano é também mais falível, comete diversos erros, como na dedução do autor da emboscada já referida, na forma como se deixou surpreender por Andy após a captura, ou como foi ludibriado pelo juiz em que é ferido no ombro. Um herói que vai a reboque dos acontecimentos sem conseguir o controlo dos mesmos, transparecendo a ideia que chega sempre atrasado e que se revela impotente para alterar o rumo. Como exemplo, não obstante todos os seus esforços não consegue cumprir a promessa a Andy de ter um julgamento justo nem impedir o seu trágico fim.

Também em termos narrativos existem diferenças notórias! Nolitta utiliza uma narração “silenciosa”, deixando, intencional e estrategicamente, vinhetas sem diálogos, isoladamente em pranchas ou em séries, ou mesmo pranchas completas e seguidas. Por vezes utilizando apenas, pontualmente, cartuchos descrevendo a situação ou o cenário. Esta técnica[3], consoante a situação, confere maior dinamismo às cenas ou contribui para aumentar a tensão e suspense. Outro recurso utilizado para o aumento a tensão e suspense utilizado pelo autor, e bem patente nesta narrativa, consiste em esconder os factos do leitor, só os revelando no momento em que o protagonista toma conhecimento dos mesmos. A forma como revela o autor do atentado que Tex sofre na perseguição a Andy, após fuga de Happy Fork[4], e o fatídico final[5] do jovem foragido são exemplos demonstrativos da utilização desta técnica.

O cinema como fonte de inspiração na elaboração das tramas era outro dos recursos regularmente utilizado por Sergio, e “El Muerto”, a segunda história escrita pelo autor é uma boa amostra. Repleta de ingredientes característicos dos denominados “Spaghetti western”, como vingança, violência, cidade fantasma, duelo final, entre outros, “El Muerto” é uma narrativa de ódio e vingança em que um misterioso pistoleiro, com o rosto deformado por queimaduras, lidera um bando de criminosos nas brutais agressões, primeiro a Jack Tigre e mais tarde a Kit Willer, ferindo este num ombro, com o único objetivo de obrigar Tex a um duelo em Pueblo Feliz.

Aventura em que apresenta, mais uma vez, um protagonista que não domina as situações, que se revela incapaz de deter os vilões no primeiro encontro, que é forçado a seguir para Pueblo Feliz como determinado pelo chefe do bando. Um herói, por conseguinte, mais vulnerável, mais falível, mais melancólico e pensativo nas suas deduções, do que o idealizado por G.L.Bonelli. Factos observados na forma como Tex é completamente surpreendido[6] quando se dirige para Pueblo Feliz e como erra ao considerar que El Muerto  o principal responsável pelo ataque.

Em termos narrativos Nolitta mantêm-se fiel à sua fórmula de contar histórias utilizando vinhetas, propositadamente, sem diálogos para aumentar a tensão e suspense mantendo, intencionalmente, o leitor na ignorância dos acontecimentos até ao último momento. Sempre com esse objetivo de criar suspense e aumentar a tensão, a identidade e as razões do ódio de El Muerto por Tex só são reveladas, pelo próprio, num longo flashback, quando se encontram cara a cara, no cemitério, imediatamente antes do duelo. Assim como a agressão a Kit Willer que é contada, também ela, em flashback e pelo interveniente.

Não obstante os receios de Sergio em substituir o pai, autor consagrado nos fumetti italianos, o elevado volume de trabalho nos bastidores da editora, que constituía a sua principal função na época juntamente com a construção dos argumentos mensais para as aventuras de Zagor e Mister No, os seus verdadeiros “filhos”, a verdade é que Nolitta não desiludiu. Muito pelo contrário! Escreveu logo nos seus primeiros dois trabalhos de Águia da Noite, duas histórias, que passados mais de quarenta anos continuam a ser incluídas na maioria das seleções das melhores histórias do personagem. Mas não foram só estas duas obras-primas que o ano de 1976 trouxe a luz, nesse ano, Sergio também escreveu duas excelentes aventuras de Zagor, que também elas figuram na maioria das seleções das melhores histórias do personagem: “Kandrax o mago” e “Dharma a bruxa”.

Nolitta parecia destinado a escrever grandes histórias, “Missão em Great Falls” é outra dessas aventuras! 
Ambientada nos territórios de língua francesa do Canadá, esta narrativa tem como pano de fundo a rebelião dos habitantes de origem francófona contra o exército britânico. Tex e o capitão Jim Brandon após permitirem a fuga dos primos, Pierre e Roger Goudret, e recuperarem dos ferimentos sofridos, disfarçados de caçadores, iniciam a perseguição entrando nos territórios controlados pelos rebeldes na tentativa de os capturar e evitar a rebelião que poderia causar milhares de vitimas inocentes. Narrativa longa de 381 páginas, dramática, cheia de tensão, intercalada com momentos de humor tão ao gosto do criador, como o encontro de Tex com Jim no saloon de Great Falls[7], ou o encontro destes com Soublette[8], um dos guias da região. Mas é também uma aventura cheia de ação em que os protagonistas enfrentam inúmeras dificuldades, são feridos, aprisionados, torturados e impotentes para capturarem os responsáveis pela rebelião.

Chamemos-lhes imprevisto, golpe do destino ou fator sorte, mas na realidade, as verdadeiras razões do sucesso dos protagonistas nesta aventura devem-se, sobretudo, às divergências de opinião dos primos Goudret sobre o rumo que a rebelião deveria tomar, à instabilidade psicológica de Pierre, vulgo Big Bear, que assassina o seu primo, que devido aos seus ideais e à sua capacidade de influenciar as tribos indígenas era o grande responsável pela união das diversas raças em torno da causa, e à ação de Donovan, o sargento que traiu a Policia Montada para se juntar aos rebeldes, que impede Big Bear de matar Tex e Jim sacrificando a própria vida. Mais do que qualquer ato corajoso ou heroico por parte deles!

O cunho de Nolitta está bem patente nesta aventura: a comicidade já identificada, as referências históricas aos conflitos entre britânicos e franceses na região do Canadá, (artificio que costumava utilizar noutros personagens e agora também em Tex), a existência de personagens secundários carismáticos, difíceis de classificar, em que os considerados vilões são capazes de sacrificar a vida por pequenas coisas ou por um ideal, e um protagonista dependente de outros, do destino, ou da sorte, para realizar a missão. Estas são claramente marcas Nolittianas, a maioria já detetada em obras anteriores. Mas Nolitta consegue ir ainda mais longe ao colocar Tex numa situação que Bonelli, seu pai, evitaria colocar! Talvez por pensar não ser condizente com o herói por ele criado: O abandono da patrulha de soldados atacada pelos rebeldes num desfiladeiro após a recusa do tenente, que liderava, em retirar[9].

Em “O sinal de Cruzado” um grupo de jovens guerreiros Navajos abandona a aldeia de Águia da Noite e segue Cruzado, e o seu bando de Paiutes, nos roubos e assassinatos aos colonos da região. Tex e Tigre partem na perseguição do bando para libertarem os Navajos da influência de Cruzado e convence-los a regressar a casa. Aventura carregada de dramatismo que se conclui sem se perceber se os heróis saíram vitoriosos. Após a captura de Cruzado, o final expectável, Nolitta prolonga a história em cerca de setenta pranchas ao incluir o trágico regresso a casa, em que cinco dos seis Navajos sobreviventes vão perder a vida. Ao falhar na missão de trazer os jovens guerreiros de volta à aldeia, a vitória sobre Cruzado perde significado, transformando-se em algo muito semelhante a uma derrota. A destacar a inclusão nesta trama, ainda que de uma forma disfarçada e superficial, um tema ainda hoje fraturante na sociedade contemporânea - a eutanásia - quando um guerreiro Navajo, após ter sido torturado e deixado para morrer[10], suplica a Tex que ponha termino à sua vida. A abordagem ao tema pode considerar-se leve porque impede o herói de tomar uma decisão, visto que, enquanto este hesita, o jovem acaba por falecer. No entanto, esta é mais uma das situações em que o autor se distingue do seu pai, e da sua forma de contar as histórias, que nunca colocaria o protagonista das suas aventuras numa situação tão polémica.


As aventuras seguintes poderão não ser tão dramáticas, mas são igualmente interessantes e carregadas de suspense e mistério em torno dos responsáveis pelos eventos, sendo, por vezes, enriquecidas com a inclusão de referências históricas, como personalidades, atos ou eventos. Em “O solitário do Oeste” Tex e Kit integram uma expedição militar e cientifica americana, ao istmo do Panamá, com o objetivo de verificar a viabilidade da construção de um canal para ligar os oceanos Atlântico e Indico. Timothy O` Sullivan, o fotógrafo que os acompanha, é a personalidade histórica que Nolitta introduziu na trama, e a expedição científica o facto. Nesta narrativa a expedição é alvo de frequentes incidentes e de diversos ataques índios que a atrasam e dizimam os seus membros. Quem está por trás? Porquê? Os protagonistas e o leitor têm a mesma perceção dos factos desconhecendo a identidade dos responsáveis que só é revelada nas últimas páginas da obra. Todavia o autor não explica tudo! As motivações do traidor não são reveladas. nem necessitava de o fazer! Com maestria Nolitta cria um desfecho plausível que dispensa que o leitor conheça as razões da traição. O não explicar tudo, o deixar pontas soltas adensando o mistério, é outro recurso frequentemente utilizado pelo autor para tornar as narrativas mais realistas e interessantes. Afinal nem tudo na vida têm explicação.

O suspense criado em torno dos responsáveis pelos eventos é utilizado, magistralmente, nesta aventura assim como em “O vale da morte”, “A grande ameaça” ou “O assassino sem rosto”, em que o autor cria enredos extremamente cativantes. O primeiro sobre a escravização dos índios Shoshones na extração de bórax em pleno deserto Mojave, o segundo sobre os assassinatos das famílias da comunidade Mórmon de Cedar City, por um grupo de misteriosos mascarados, e o terceiro sobre sabotagens ao tratado de paz entre o governo americano e os índios Cheynnes

Em “A grande ameaça” o mistério não fica limitado aos autores dos massacres. O duplo M e as palavras “Montain Meadow” deixados nos locais dos assassinatos, pelo misterioso bando, têm um significado que os líderes da comunidade Mórmom bem conhecem e que procuram a todo custo esconder. Será que existem inocentes nesta história? Quem são? Quanto ao responsável pelos atentados, o líder dos encapuzados, a sua identidade é tão camuflada que, quando revelada, surpreende até o próprio Tex.

Em “O assassino sem rosto” Nolitta parece ter esquecido o Tex heroico, clássico, e bonelliano, que deveria seguir, ou no mínimo, o que se pode dizer, é que este argumento não foi revisto pelo seu pai, pelo que constitui um excelente exemplo da narrativa e do herói Nolittiano. Tex é surpreendido por um tiro que impede a assinatura do tratado de paz entre o governo americano e os Cheyennes, é ferido com gravidade na cabeça por Appanoosa, o chefe dos Cheyennes, sendo incapaz de o convencer que não têm responsabilidades no sucedido, é impotente para impedir a morte de Formiga Preta, o filho de Appanoosa, têm de fugir para salvar a própria vida e é apelidado de “verdadeiro inimigo” e “cão traidor” pelo chefe dos Cheyennes. Nolitta apresenta-nos um herói abatido, derrotado, conformado com o fracasso, cuja única pista que possui da identidade do sabotador e assassino é um medalhão de mulher encontrado na mão do assassinado, Formiga Preta, mas que se revela inútil, já que se trata de uma faceta desconhecida. Somente o fortuito encontro com Timothy O´ Sullivan e o facto de este ser fotógrafo vai permitir desvendar a identidade do sabotador e assassino.

“Cheynne Club”, aventura publicada em Itália nas edições mensais de Tex números 289 a 292, entre novembro de 1984 e fevereiro de 1985, marcou o fim de ciclo iniciado com “Caçada humana”, nove anos antes. Provavelmente, nem o próprio Sergio imaginaria que o apoio prestado a seu pai, na difícil tarefa de escrever as aventuras de Tex, iria ser tão duradouro. Sergio escrevia os enredos do ranger em situações verdadeiramente difíceis, nos seus tempos livres, de noite, em viagem e nos intervalos das suas verdadeiras tarefas na editora, que lhe roubavam muito do seu tempo: as questões comerciais e editoriais, assim como a criação dos argumentos para Zagor e Mister No. Apesar disso sentia uma grande responsabilidade ao escrever as tramas de Tex, por ser um personagem criado pelo seu pai, e por ter mudado a sua vida pessoal e profissional. Por esses motivos escrevia com muita seriedade e preocupação, porque tinha conhecimento que as suas histórias, e o “seu” Tex, seriam muito diferentes senão estivesse “amarrado” a imitar o Tex de seu pai. O afastamento de Sergio foi possibilitado pela entrada de Claudio Nizzi, que demonstrou, em poucas histórias, ser capaz de substitui-lo, revelando-se um profundo conhecedor do personagem e das suas aventuras, e mais importante: ser capaz de reproduzir o estilo de Bonelli pai! Algo que Sergio, por muito que tentasse, não o conseguia. Como evidenciam as histórias que escreveu ao longo deste ciclo.

O Tex de Gianluigi, o herói clássico, que muito raramente tem duvidas, que identifica os vilões com um simples olhar, um verdadeiro justiceiro que é simultaneamente juiz e carrasco, que não olha a meios para obter o que considera justo, mesmo que tenha de violar as leis para o conseguir. Um Tex que é quase infalível nas suas deduções, que parece indestrutível, quase um super-herói, que enfrenta inúmeros fora-da-lei sem ser ferido. Para Bonelli pai as personagens não possuem densidade psicológica, tudo é preto e branco, existindo uma clara separação entre bons e maus. Nas suas narrativas[11] Tex apresenta-se normalmente acompanhado pelos seus “pards”, são lineares, em que tudo é esclarecido, sem pontas soltas, não existindo espaço para a comicidade[12] e para o humor. Excetuando as histórias em que é introduzido o género fantástico, a maioria das suas tramas poderão ser consideradas puro western.

O herói idealizado por Nolitta é um personagem moderno, menos ousado e arrogante, dependente de outros, da sorte ou destino, que duvida das suas capacidades, que erra nas suas avaliações e deduções, que é surpreendido frequentemente pelos seus inimigos, que por vezes falha nos seus compromissos e objetivos, e que por vezes é derrotado e sofre perdas - circunstancias em que se revela incapaz de proteger os seus amigos ou os que estão à sua guarda. Mas é também um protagonista mais realista e calculista nos momentos de perigo, que pondera os riscos e é capaz de fazer pactos com os inimigos. O Tex Nolittiano é ainda mais bem-humorado, sarcástico com os inimigos e adversários e brincalhão com os parceiros, mais introspetivo nas suas deduções, capaz de demonstrar sentimentos como raiva, frustração ou indignação. Em suma, o Tex de Nolitta é uma mistura do herói criado pelo seu pai com Zagor e Mister No, seus personagens, pois incorpora, claramente, características das personalidades destes dois heróis.

Quanto às histórias idealizadas por Nolitta são muito mais de que western puro! A sua habilidade para a mistura dos diversos géneros literários na mesma narrativa e a sua atração pela comicidade, elemento indispensável nas suas tramas, assim como suspense, torna-as difíceis de classificar. São por norma mais complexas, imprevisíveis, repletas de volte-faces, com maior dimensão psicológica e dramatismo, repletas de mistério e tensão em que o autor inclui pequenos episódios quotidianos para alternar ou quebrar os ritmos narrativos. O herói apresenta-se normalmente sozinho ou acompanhado por apenas um dos seus parceiros, as personagens secundárias têm personalidade, dificilmente classificadas como bons ou maus, os desfechos, devido ao seu estilo narrativo de esconder os factos do leitor, são interessantes e por vezes surpreendentes.

Estas duas versões, a original de Gianluiggi e a alternativa de seu filho, versões muito diferentes, quase opostas, mas que ao longo de quase uma década coabitaram na mesma publicação contribuindo para a fase que muitos consideram a fase de ouro do personagem: Meados da década de sessenta até meados da década de oitenta. Até a entrada de Sergio as aventuras foram todas escritas por Giovanni como já referido, destacando-se: “Juramento de vingança”, “Entre duas bandeiras”, “A cruz trágica”, “O filho de Mefisto”, “A grande intriga”, “Terra prometida”, “Os sinos dobram por Lucero”, “O retorno de Yama”, “Apache Kid”, “A noite dos assassinos” e “Assalto ao trem” entre muitas outras. Na segunda metade desta fase fantástica, após “Caçada humana” que marcou a entrada de Sergio, de seu pai destacam-se: “O mistério da mina”, “A mesa dos esqueletos”, “Trapper!”, “O ouro do Colorado”, “A aguia e o relâmpago” e “O clã dos cubanos”. De Sergio, além das aventuras já mencionadas neste texto, sobressaem ainda, pela qualidade, a fantástica “Patrulha perdida”, trama que gira em torno de um militar que revoltado com os seus superiores decide vender a patente de um rifle revolucionário aos mexicanos, e pelo género narrativo, “Sasquatch”, em que o autor entra no género fantástico criando uma versão do “Bigfoot”.

Criada numa situação de emergência face à necessidade que o seu pai teve em reduzir o volume de trabalho, devido à avançada idade e ao acidente a praticar esqui, inspirada em factos verídicos, cinema ou simples fotografias[13], a versão Nolittiana, a alternativa, cuja existência se pressupunha curta, acabou por prolongar-se por 9 anos e incluir 16 histórias, tornando-se marcante, distinta, intemporal e memorável, ao ponto de hoje, passados mais de três décadas, continuar a ser recordada e as suas aventuras continuarem a ser incluídas nas seleções das melhores histórias por grande parte dos fans do herói, sendo, em minha opinião, a melhor versão do personagem desde a sua criação no longínquo ano de 1948.

Nota Final:
Para escrever este texto reli todas as 19 aventuras escritas por Nolitta, e li com muito prazer. Mesmo histórias que na época não dei grande valor como, “O cowboy sem nome”, “Sasquatch”, “Os mercadores da morte” ou “Cheynne Club”. A leitura só confirmou o que pensava: as aventuras desta fase são muito melhores do que as histórias atuais!
Não é de agora! Já havia confessado anteriormente a minha preferência pelas histórias de Tex escritas por Gian Luiggi Bonelli e Guido Nolitta e alguma desilusão com as histórias atuais do personagem. Preferências denunciadas em textos como “O elo[14]” e “Trapper[15]”. O facto de a grande maioria das histórias atuais serem produzidas em blocos múltiplos de 110 páginas, associado ao grande volume de histórias que cada argumentista escreve em simultâneo, pode, em minha opinião, justificar o porquê das aventuras atuais serem tão previsíveis e por vezes desinteressantes. Os escritores estão demasiado amarrados a estes limites que lhes restringe a criatividade. Recordo que na referida “idade de ouro” as aventuras iniciavam-se e terminavam em qualquer ponto da revista, sem número definido de páginas. Curiosamente, ou talvez não, o término dessa fase é quase coincidente com a opção editorial de fechar as aventuras nos referidos blocos de páginas.

Principais referências:
Em nome do pai – Moreno Burattini – Revista Clube Tex Nº 7
Um Tex meio Zagoriano – Júlio Schneider – Tex Ed. Histórica Nº 92

Listas de Histórias, (série mensal), escritas por Guido Nolitta e sua correspondência no Brasil:
● CACCIA ALL'UOMO - 183-185 (Jan-Mar 1976) – Desenhos de Fernando Fusco.
Caçada humana - TEX 68-69 – T2E 68-69 – TXC 235-237 – TEH 92.
● EL MUERTO - 190-191 (Ago-Set 1976) – Desenhos de Aurelio Galleppini.
El Muerto – TEX 112 – T2E 112 – TXC 242-243 – TEH 96 – ATX 07.
● QUATTRO SPORCHE CANAGLIE - 202-203 (Ago-Set 1977) - Desenhos de Erio Nicolò.
               O cowboy sem nome – TXC 254-255 – TEH 101 – ATX 10.
● MISSIONE A GREAT FALLS - 203-207 (Set 1977-Jan 1978) - Desenhos de Fernando Fusco.
               Missão em Great Falls – TEX 131-134 – T2E 131-134 – TXC 255-259 – TEH 102.
● VIRGINIA CITY - 220-223 (Fev-Mai 1979) – Desenhos de Erio Nicolò.
               Sasquatch – TXC 272-275 – ATX 32.
● FRONTIERE DI FUOCO - 223-226 (Mai-Ago 1979) - Desenhos de Aurelio Galleppini.
               Missão suicida – TXC 275-278 – TXO 10.
● UNO STRANIERO A ELK CITY - 236-239 (Jun-Set 1980) - Desenhos de Erio Nicolò.
               Mercadores de morte – TXC 288-291 – TEX MS – 02.
● I GUERRIERI VENUTI DAL NORD - 242-245 (Dez 1980-Mar 1981) - Desenhos de Aurelio Galleppini.
               O sinal de Cruzado – TEX 157-159 – TXC 294-297.
● IL SOLITARIO DEL WEST – 250-252 (Ago-Out 1981) - Desenhos de Giovanni Ticci.
               O solitário do Oeste – TEX 163-165 – TXC 303-305.
● ARTIGLI NELLE TENEBRE - 253-254 (Nov-Dez 1981) - Desenhos de Guglielmo Letteri.
               Aventura no Caribe – TXC 306-307 – TAV 01.
● IL DESERTO DI MOJAVE - 254-256 (Dez 1981-Fev 1982) - Desenhos de Fernando Fusco.
               O vale da morte – TEX 160 – TXC 307-309.
● LA FRECCIA SPEZZATA - 261-262 (Jul-Ago 1982) - Desenhos de Erio Nicolò.
               A flecha quebrada – TEX 167-168 – TXC 314-315.
● LA PATTUGLIA SPERDUTA - 271-273 (Mai-Jul 1983) - Desenhos de Giovanni Ticci.
               A patrulha perdida – TEX 177-179 – TXC 324-326 – TEF 10.
● LA GRANDE MINACCIA - 276-277 (Out-Nov 1983) - Desenhos de Aurelio Galleppini.
               A grande ameaça – TEX 181-183 – TXC 329-330.
● IL KILLER SENZA VOLTO - 287-289 (Set-Nov 1984) - Desenhos de Aurelio Galleppini.
               O assassino sem rosto – TEX 193-195 – TXC 340-342 – TEF 08.
● CHEYENNE CLUB - 289-292 (Nov 1984-Fev 1985) - Desenhos de Fernando Fusco.
               Cheyenne Club – 195-198 – TXC 342-345 – TXO 01.
● RITORNO A PILARES - 387-392 (Jan-Jun 1993) - Desenhos de Guglielmo Letteri.
               Retorno a Pilares – TEX 297-299 e 301 a 304 – TXC 440-445 – TXO 41-42.
● LA STRAGE DI RED HILL - 431-435 (Set 1996-Jan 1997) - Desenhos de Alberto Giolitti e Giovanni Ticci.
               O massacre de Red Hill – TEX 343-348 – TXO 56-57.
● GOLDEN PASS – 466-469 (Ago-Nov 1999) - Desenhos de Giovanni Ticci.
Golden Pass – TEX 382-385 – TXO 73.

LEGENDA:
·        TEH - Tex Edição Histórica
·        T2E - Tex 2.ª Edição
·        TXC – Tex Coleção
·        TXO - Tex Ouro)
·        ATX - Almanaque Tex
·        TEF – Tex Especial Férias
·        TAV – Tex e os Aventureiros


[1] TEX ED. HISTÓRICA Nº 92 – Caçada humana, páginas 76 a 81.
[2] TEX ED. HISTÓRICA Nº 92 – Caçada humana, páginas 167 a 170.
[3] TEX ED. HISTÓRICA Nº 92 – Caçada humana, páginas 174, 190, 204 e 221 – Exemplos de narração silenciosa.
[4] TEX ED. HISTÓRICA Nº 92 – Caçada humana, página 80.
[5] TEX ED. HISTÓRICA Nº 92 – Caçada humana, páginas 224 e 225.
[6] TEX ED, HISTÓRICA Nº 96 – El Muerto, páginas 102 a 119.
[7] TEX COLEÇÃO Nº 255 – O caubói sem nome, páginas 87 a 110. A chegada de Jim e Donovam a Great Falls, toda a cena no saloon, a atuação do mágico, os diálogos de provocação constituem um pequeno episódio humorístico típico das histórias Nolittianas que pouco acrescentam à trama principal.
[8] TEX COLEÇÃO Nº 257 – Um País em chamas, páginas 27 à 49. Após a decisão de irem para o forte Brooks, os diálogos entre Tex e Jim e a situação de não poderem acender a fogueira até ao encontro com Soublette estão repletos de humor.
[9] TEX COLEÇÃO Nº 257 – Um País em chamas, páginas 05 aà 22. Tex coloca Jim inconsciente e foge a cavalo abandonando a patrulha que é chacinada. Não por cobardia mas por considerar que o sacrifício seria inútil.
[10] TEX COLEÇÃO Nº 296 – O caçador e a presa, páginas 34 e 35.
[11] Na fase de ouro do personagem (meados década de sessenta a meados da década de oitenta).
[12] Exclui-se os diálogos provocadores entre Tex e seus “pards”, especialmente com Carson.
[13] Os traços gerais de “Il killer senza volto” – “O assassino sem rosto” no Brasil – foram inspirados numa foto tirada em maio de 1968 que retrata o encontro de membros do governo com chefes de diversas tribos índias, no forte Laramie, Wyoming para a assinatura de um tratado de paz.
[14] Revista Clube Tex Portugal Nº 1 - “Confesso alguma desilusão com as histórias atuais de Tex. Não prendendo colocar em causa a qualidade dos argumentistas, que considero excelentes, mas nas histórias de Tex falta algo! Muitas das histórias até começam bem, mas depois o ritmo narrativo é lento, existem poucas cenas de ação, não existem inimigos perigosos e carismáticos, não existe suspense e, terminam normalmente de forma abrupta e previsível. …O Tex atual está muito diferente do Tex da fase de Ouro. As histórias são demasiado complexas, por vezes monótonas, existe muito pouca ação para um Western. O doseamento entre os diversos ingredientes, de uma história texiana, não está correto.”
[15] Revista Clube Tex Portugal Nº 3 – “As aventuras de “a idade de ouro” tinham algo! Algo fascinante que as tornava marcantes, que mantinham os leitores interessados, presos à leitura! Fascínio que raramente consigo encontrar nas aventuras deste século, que considero demasiado complexas e por vezes monótonas ou desinteressantes.”

PS: Texto publicado na revista Clube Tex Portugal Nº 10 em Julho de 2019